segunda-feira, 29 de julho de 2013

Neve

As férias passaram rápido, é como se o inverno consumisse com meus dias e noites. Esse clima não me favorece, não gosto da temperatura baixa, meu ânimo cai, meus olhos se desfalecem e eu perco as horas ao dormir. Fico divagando enquanto o sol se põe. Admiro o céu multicolor, meio alaranjado, meio róseo, e simplesmente fascinante. Enrolada nas cobertas, percebo que a minha esperança é como aquela estrela luminosa, assim que nasce, se eleva, perpassa meia volta e repousa no final.
Enquanto ela descansa, minha pupila é encoberta pelas pálpebras emitindo as imagens de um passado ora imaginado, ora real e incompleto. As faces nítidas me atormentam, é a recordação acenando em minha direção. Não sei se é sonho ou pesadelo, mas eu vejo uma mesma pessoa por semanas, me perturbo por não ser hábil o bastante para esquecê-la em sua totalidade. Acordo absorta, perdida num cenário embaçado, tentando entender o porquê de restaurar tais representações. Relaxo um pouco e o máximo que consigo é fechar os olhos novamente. Outra explosão de imagens.
Livre dos vultos, onde quer que eu passe, eu avisto um sinal do que há pouco vi e rememoro as emoções contrastantes: ódio, amor, raiva, carinho, vingança. Até um terço do dia eu não consigo me dar conta do que realmente eu sonhei ou de quem esteve na memória. Remexo a cabeça num gesto inútil de esquecimento, mas a noite é malvada e silencia para me torturar.
Desprezo sentimentos advindos de um passado que mal reconheço. Eu enterrei os fantasmas, eles não podem mais voltar, eu os petrifiquei. Não vejo razão nesse retorno, ainda que abstrato e fruto da imaginação. Minha frieza se desencadeou a partir dos meus conflitos com estas figuras. Talvez eu não tenha enterrado direito. Talvez eu mesma esteja querendo que elas voltem. É tudo tão confuso. Certamente, as férias que tive foram curtas em sua duração, mas longas na intensidade. Se for necessário ao passado, que ele volte a mim; preciso da primavera. Não quero mais congelar.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Nomes

Nomes esquecidos.
Nomes marcantes.
Nomes sequer conhecidos.
Nomes que nem nomes são.
Nomes apelidos, sobrenomes.
Nomes difíceis na articulação.
Nomes estrangeiros.
Nomes misturados.
Nomes falsos e verdadeiros.
Nomes do dicionário.
Nomes próprios e comuns
Que remetem a outros vários.
Nomes apressados e lentos.
Nomes bem ditos,
Que não saem do pensamento.

sábado, 13 de julho de 2013

Trilha sonora

É dia do Rock, baby, e eu aqui preparando aula. Ao som de "It's a long way to the top (if you wanna rock'n'roll)" eu escolho o conteúdo, o tempo para cada tópico a ser discutido e imagino a reação dos alunos durante os meus questionamentos. Só quem é professor entende a expectativa que se tem ao olhar para aquelas expressões indecifráveis. Quando o dono de uma delas começa a falar, é como a gaita de fole na música citada, a resposta surpreende e parece que tomamos a direção correta.
Em outro momento da aula, a música parece mudar e vai para "Otherside". Por quanto tempo o professor prepara a aula, por quanto tempo o professor explica a matéria tentando levar os alunos para o outro lado, o lado do conhecimento apurado? Quando somos a parte discente do contexto escolar, é comum que a nossa atenção se volte para o entretenimento, o que não deixa de ser uma das áreas do conhecimento. Ao considerar que esse interesse do jovem seja natural, o professor age para levá-lo ao mundo de assuntos que exigem maior reflexão, não curiosamente chamados de chatos.
Então, "What do you want from me" é o que todos se perguntam. As discussões dentro do estabelecimento de ensino são predeterminadas como maçantes e sem graça, mas é o professor quem primeiro trabalha no sentido de inová-las, ou espera-se que ele faça isso. Com a tecnologia tomando conta do nosso dia a dia, seja para mandar mensagens e navegar pelas redes sociais, ela também alcança a sala de aula por meio de televisões, celulares, computadores etc., servindo de ferramenta de ensino e de estudo.
Assim, sigo nessa linha de raciocínio que eu mesma compus, ouvindo minha própria trilha sonora. Não me permito deixar de ouvir minhas músicas, pois são elas que dão cor ao meu desempenho profissional e ritmam meu pensamento. Enquanto "Patience" toca, eu faço as minhas pesquisas, analiso-as e depois aplico minhas impressões pessoais nas atividades. Assobio em um ato meio inconsciente, coloco o material impresso na bolsa e me dou conta de que tudo isso me faz bem. Soa tão bem à minha alma quanto ouvir o dedilhado da guitarra no início de "Learn to fly".

domingo, 7 de julho de 2013

Mundo perfeito

Movida pelo coração partido e olhos entristecidos, a caneta adquire a função de registrar o cenário em que meus quatro avós provavelmente estão agora. Cercadas de árvores, são três pessoas sentadas à mesa aguardando pelo senhor que sobe as escadas sossegadamente, com um ar de missão cumprida. Assim que ele chegar, a conversa sobre seus filhos se inicia, pois agora todos estão impedidos de nos visitarem em matéria. É um momento bonito e de tranquilidade, afinal se eximiram de preocupações terrenas e sentem-se livres para rir, andar, correr sem que qualquer mal os atrapalhe. Além do mais, esta é a hora para orgulharem-se de seus descendentes e da continuidade que darão aos seus ensinamentos.
O primeiro a chegar foi João. Um homem sério, meio encorpado, de bigodes marcantes. Sua verruga na testa era o aviso de que sua personalidade oscilava entre a calma e a fúria, a bondade e a grosseria. Ainda assim, a certeza de que educara os seis filhos emanava pelo seu modo de observar as pessoas, num tom altivo. Morreu no dia 09 de Dezembro em 1980, após complicações de trombose por ter amputado suas duas pernas. No outro plano, chegara àquela mesa feliz, com um caminhar vagaroso. Sentia-se cheio de bom humor, esbanjando saúde. 
Sentara-se comodamente, cruzando as pernas e fumando seu charuto preferido, sem vestígios de pressa, afinal, ele já sabia que a próxima convidada chegaria somente dez anos mais tarde. Marina era uma senhora magra, de cabelos crespos que de quando em quando lhe caíam pela testa pequena. Seus óculos a faziam uma mulher séria, até carrancuda, pois a isso se juntavam as suas reclamações pelos afazeres domésticos que não se esgotavam e vizinhas bisbilhoteiras que insistiam em conversar. Mãe de três filhos, esposa leal ao marido, devota de Nossa Senhora Aparecida. Convivia com poucas palavras, viera um infarto fulminante e, aos 59 anos, morrera sufocada com elas. No dia 30 de Julho muitos choraram por sua perda ao mesmo tempo em que João orgulhava-se por tê-la como ilustre companhia.
Enquanto isso, Elisa, mulher de alma solitária, vagueava pelas casas de suas filhas. Ela nem imaginava que era a dona do terceiro lugar daquela mesa. Uma mulher de decisões inflexíveis, passos e palavras firmes. Sempre com roupas apresentáveis, caprichava no tempero da comida e zelava pela formação de seus quatro filhos e duas filhas. Nutria certa predileção por elas, por serem as mais novas e não lhe recusarem a oferta de amor, aconchego e carinho. Morrera numa sexta-feira nublada, no dia 24 de Abril de 2009, em razão de seu segundo derrame e idade avançada.
Já eram três à mesa, e todos comentavam que o mais forte estava por vir, ansiavam por sua chegada. Eles sabiam que Manoel era pulso firme, difícil na queda e nunca desejou fazer parte daquele banquete, pois estava sendo muito bem cuidado por sua segunda esposa e seus três filhos, oito netos e sete bisnetos do primeiro casamento. Pernambucano, sujeito perspicaz, ele dava conselhos e fazia piadas para quem o tinha como interlocutor. Residia numa cidade pequena e monótona, mas vivia sorridente. Enfrentou problemas de saúde na perna, o que não o impedia de tomar sua cerveja com seu filho mais novo nos finais de semana. Católico assíduo, jamais faltara às missas de Domingo. Distraía-se em suas pescarias e cortes de cabelo, ainda que suas mãos trêmulas e visão curta o impedissem de realizar o trabalho como antigamente. Marido exemplar, pai presente, avô afetuoso, um cidadão justo, esse era o Manoel barbeiro. Contudo, numa manhã gelada de Julho, assim como sua esposa, desmanchara-se no chão por infarto fulminante. Foi assim que no dia 2, em 2013, ele encontrou o chão sem os sentidos. Era o momento de ir à mesa.
Os convidados, João, Marina e Elisa, aguardavam o dono do sotaque arrastado chegar e ele, apesar da idade, iluminava seu rosto com um belo sorriso e distribuía abraços calorosos com direito a tapinhas leves nas costas. Antes que alguém lhe convidasse para tomar o café preto que tanto prezava por beber em todas as horas do dia, Manoel precipitava-se em dizer "Vocês estão bem? Como foram de viagem?". Em resposta, riam-se e sentavam-se à mesa para contar-lhes os detalhes da vida diferente que há anos levavam. Ele, surpreso e meio absorto, demorava o seu olhar nos olhos daquela que fora sua fiel amante e sentia-se brando e satisfeito por dentro. Marina notara, pois o sorriso disfarçado se denunciava nos lábios comprimidos daquela face cansada.
Embora faça parte da missão, agora são os quatro que se afastam das coisas físicas, cabendo aos seus filhos enfrentarem as mesmas dificuldades dadas por vencidas. Contudo, em especial, João, Marina, Elisa e Manoel deixam para trás uma neta que os imagina em um mundo perfeito sob a condição de se tranquilizar. Como avós, reconhecem que para a construção dessa história ela teve a necessidade de resgatar o aparato verbal de seus pais e o pouco que convivera com os dois últimos convidados. Invariavelmente, só ela consegue reconhecer a parte que cada um desses quatro deixou em sua personalidade. A imaginação, todavia, deixa-se fluir por si mesma.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Metáfora

Não, ontem o céu não ganhou outra estrela. Afinal se morrer é virar estrela, por que em algum momento ela deixa de brilhar? Se a estrela é a representação de alguém que foi bom ela não poderia perder a sua especificidade. Todos que a admirassem aqui na Terra deveriam vê-la pela eternidade. A morte não é virar estrela, é fazer com que o brilho que supostamente ela tem ilumine o nosso interior. Isso, ainda que seja temporariamente, serve para repensarmos os nossos atos com aqueles que estão vivos, pois é a oportunidade para purificarmos a alma e fazermos escorrer as impurezas espirituais. Estrela não é nada disso. Se alguma coisa aconteceu na linguagem metafórica foi: ontem meu coração se desprendeu de uma de suas partes mais importantes. Perder um ente querido da família é perder um pedacinho de si mesmo. Um ente querido já bastaria para se enquadrar nessa definição. Mas virar estrela? Não!